Reverberações
Depoimentos
|| Rosa Primo
Imperdivel!!!!!
Difícil se ver a si mesmo. Quase não cabe. Fiquei dando voltas; e pensando... Vai ficar pior! Olhei para a platéia e as cadeiras vazias... De fato, impossível tentar me representar naquela situação, crua, nua, despedaçada. Ardor, esse é o termo – como se todo o oceano fosse insuficiente para calar este murmúrio. E tudo segue; de tantas formas. Tantas formas de estar banida, atada e só. Não há terra que arrefeça. Fui indo para trás na esperança de não ser abduzida por mim mesma. Então, selecionei aquela blusa cobrindo o vômito: aprovado hoje o projeto de autoria do Tribunal de Justiça do Paraná que aumenta gratificações para magistrados, promotores e procuradores, custando aos cofres públicos quase R$ 8,9 milhões por ano. Mas nada pior que aquele chute na cara: nos primeiros 29 dias deste ano, 43 mulheres foram mortas no Ceará – um aumento de 330% com relação a todo o mês de janeiro do ano passado. Mas que nada.... !!!! É bem pior ser cuspida, lambida, escarnecida: tipo Paulo Maluf será submetido a uma perícia médica “para fins de análise de prisão domiciliar humanitária”. E vai ficando pior: no dia do apagão lideranças Anacé, no município de Caucaia, sofreram mais uma ameaça e temem por suas vidas. São tantas idas para pior... E fui me vendo daquele jeito: empurrada, adormecida, carregada, hipnotizada, esbagaçada, amordaçada, ajoelhada, muda, trancafiada, açoitada. E tem sido assim.... E o pior de tudo é que não é só eu! Era tanta gente ali. A humanidade inteira, a vida inteira, a existência inteira. Quanto mais eu me via, mais via outros em mim. E o que resta? Se ver. Gratidão a Inquieta. Eis que a vida é. Imperdível.
|| Valencia Losada
A experiência de assistir Pra Frente o Pior, da Inquieta Cia, foi algo singular em sensações, percepções e sinapses. Posso ainda encontrar em mim as reverberações ocasionadas por esse míssil performativo, capaz de desacomodar lugares preestabelecidos numa experiência teatral de rara potência. Pra Frente o Pior possui os atributos necessários para pensarmos a vida contemporânea, mas também o primitivo que nos é constitutivo. Os atores/atuadores são zumbis, corpos coisificados e autômatos, entregues à docilização e ao desespero, são indivíduos e também multidão, e correm exaustos e a caminho de não se sabe pra onde. A antropologia em comunhão com a antropofagia, o vômito urgente de quem reage e ainda se permite sentir, mas que é obrigado a seguir, mesmo ciente da exaustão e dos gritos ensurdecedores de mulheres, de etnias inteiras dizimadas, de uma civilização que, quanto mais anda, menos sabe sobre si e sobre o outro. Pra Frente o Pior é uma experiência pra vida inteira.
|| Dane de Jade
Um trabalho no qual os sentidos do espectador são atraídos por meio de uma narrativa de corpos em movimentos, estabelecendo-se assim um diálogo que emerge das experiências estéticas individuais em interação com a cena. Uma simbiose a partir da qual o espectador pode construir sua própria dramaturgia, constituída por uma pluralidade de sensações e emoções. Os corpos em movimento parecem recriar um sistema único, orgânico, por vezes atraente, por vezes repulsivo, palavra presa que reverbera no corpo de quem vive a experiência.
|| Ana Mundim
Para vocês, com carinho e atravessamento.
Entrei. Sentei. Fui avisada. Aquilo era aquilo. Dureza é dureza. Sem concessão. Eles se (nos) deram as mãos para caminhar juntos (juntos?) e seguir adiante. Nos entrelaçamos, nos puxamos, nos derrotamos, nos canibalizamos, nos devoramos. Caímos, caímos, caímos. Levantamos. Uma mão se solta e busca retorno, em co-dependência. Vampirismo? Sim. Nos vampirizamos. E caminhamos (?) É catártico, angustiante, grotesco, dilacerante. Olho, não olho, me sufoco, respiro, choro. Corta o estômago que vomita o fundo do poço. Pra frente o pior não está na frente, mas aqui. Sem sair do lugar. Na merda. Estamos na merda que criamos. Soco. Fim.
|| Nádia Fabrici
Ir. Não. Voltar. Não. Permanecer. Existir no entrelugar. Resistindo como se os ossos quisessem ir corpo afora. Partir. Caminhar. Carregar. Arrastar a carne, a ossada. Um amálgama tempos e mundos. Um mundo de forças contrárias e tão unidas. Um tédio em festa. Um percurso longo em sua pequenez. Um afeto violento no segurar das mãos. São muitos os oximoros. “Não, não soltem as mãos! ” Eu queria gritar todas as bruscas vezes que via as mãos se soltarem. Eu estava disposta a correr para continuar, continuar para nada. Uma Inquietude. Uma urgência para chegar em todos os lugares ou em lugar nenhum. Uma feroz vontade de continuar se movendo. Uma construção espaço/corpo/voz que de tão fundida já não consegue se repartir. Um corpo nu. Alguém grita. Suor. A tal dramaturgia no corpo. A pergunta de Beckett me vem “Será que estamos significando alguma coisa? ”. Eu perdi o tempo do acontecimento. Em mim ele ainda não acabou. Pele, olhos, tripas e até o silêncio. Tudo estava ali, vivo. Eu estava ali viva, com vocês. Pioravant Marche!
|| Sara Síntique
Em meio a todo esse caos e desordem, a arte nos dá um respiro e nos tira o fôlego. kafkiana, "Pra frente o pior" me fez sair do teatro com um choro engolido, com um grito pra dentro, pra dentro, depois de ver toda a explosão daqueles corpos naquele hibridismo teatro-dança repleto de êxtase e terminar batendo palmas para a imensa plateia vazia do Theatro José de Alencar, abandonada, olhando pra onde depois de tantas idas e vindas, pra onde depois de ver aqueles corpos numa metamorforse serem um só, um só, cada um pulsando um órgão, aquilo seria o coração? um cérebro? o sexo pulsante?, o indivíduo se tornando o todo, o caminho não há, o caminhar em vão, mas caminhar, caminhar, o suor, um corpo cansado, mas vivo, latente. em meio a todo esse caos, que às vezes nos deixa anestesiados de tanta surra, o sentir intenso, de cada veia em vida. Corpo político.
Obrigada, Cia. Inquieta.
Obrigada a cada um de vocês.
|| Espectador Anônimo*
"Responder rapidamente, num binário SIM ou NÃO, nunca se demonstrou ser um crime tão grave, quando se fala deste belo trabalho.
Muito prazer e muito incômodo.
E nesse mergulho do incômodo (como o incômodo laborial de quem visualiza, de quem medita), com a intenção da proposta da Cia., começo a me ver tal como estou – público.
E como público vivencio o interesse, desinteresse, empatia, vácuo daquele "estar junto" e apenas quando acaba, soltam as mãos; percebo, sinto que o que realmente me prendia ali à amá-los ou detestá-los era aquele estar junto, aquelas mãos dadas em sua dinâmica variante, aquele procurar a mão do outro e ficar.
Algo quase laboratorial.
Um grupo, cia. num tubo de por apenas 50 min.
Se soltam as mãos nada mais importa realmente, para nós o público".
8 de setembro de 2017, Guaramiranga, Ceará.
*Reverberações em um dos espectadores de nosso PRA FRENTE O PIOR no 24o. Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga
|| Renato Abê
Karl Marx tinha razão: a história se repete. A primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Em Pra Frente o Pior, temos uma adaptação da já recorrente frase do filósofo socialista. No espetáculo, o encontro de seis corpos acontece a primeira vez como tragédia e a segunda como festa. O que os artistas apresentam ao público é só o que os artistas apresentam ao público. Nada mais, nada menos.
Em cena, os performers Andréia Pires, Andrei Bessa, Geane Albuquerque, Gyl Giffony, Lucas Galvino e Wellington Fonseca. Cada qual com seu cada qual, mas também cada um interligado ao outro. Juntos, eles formam uma só massa amorfa que parte do nada para o canto nenhum. A princípio, parecem sobreviventes escapando de uma tragédia. No fim, eles já são um grupo de amigos voltando de uma farra homérica.
De cara, o verbo (que depois se mostra desnecessário) dá conta de explicar que aquilo é só aquilo mesmo. Talvez não fosse necessário anunciar o que depois se construiria de modo tão claro. Mas, claro, é também compreensível que a mente de espectador tão acostumada a ver no palco uma estrutura aristotélica pode “bugar” ao se defrontar com Pra frente o pior. A dramaturgia apresentada ali não nasce da palavra, nasce do corpo e não estamos falando de um corpo programado, ensaiado. É corpo vivo e mutável.
O desenrolar do movimento vai dando margem para que o público crie junto. É possível, a partir daquele vai e vem interminável, viajar em possibilidades de um ciclo eterno do pior. O grito, quando vem, é bem-vindo, porém não é tão potente quanto a respiração e o suor, que gritam mais que o olhar perdido dos artistas.
Em alguns momentos, especialmente quando as mãos dos artistas se soltam e se desencontram, a massa perde força. O esforço feito pelos corpos para se reencontrarem acaba levando o público ao ambiente da sala de ensaio. Não que isso seja de todo mau, mas, em alguns momentos, parece que os artistas estão mais preocupados em demonstrar o esforço de se reconectar do que de fato batalhar pelo reencontro das mãos. Isso acaba remetendo aos exercícios corporais sem objetivo claro, tão comum nas nossas salas de ensaio.
Pra frente o pior não comporta o fazer de conta. A obra está ali: viva e presente. A linguagem figurativa e o movimento demonstrativo não cabem e os seis performers sabem disso. A obra ganha força justamente pela repetição sincera, pelo movimento espontâneo. O espetáculo vale apenas o suor derramado em cena. E isso é tudo.